O
QUE É UM ERRO DE PORTUGUÊS?
Marcos
Bagno
A resposta
a essa pergunta é muito simples: é considerado erro tudo aquilo que não
pertence ao modo de falar das elites urbanas mais letradas. Infelizmente, não
podemos deixar de reconhecer que, numa sociedade muito hierarquizada como a
brasileira e extremamente no tocante à distribuição dos bens materiais,
culturais e sociais, são as elites urbanas mais letradas que ditam o que é
certo ou errado, não só em termos de língua, mas em todos os comportamentos,
crenças, gostos etc.
Se hoje a
mulher já desfruta de maior liberdade do que há 50 anos, se as relações
homoafetivas começam a ser consideradas de modo menos obscuro do que
antigamente, se a dissolução do casamento não choca mais ninguém, se a gravidez sem casamento não é mais motivo
de escândalo...é simplesmente porque as elites dominantes cederam às pressões
sociais e, sobretudo, às pressões vindas de seu próprio interior, e por
conseguinte deixaram de considerar tais coisas como pecados, desvios, taras,
perversões etc.
Desse modo,
enquanto uma forma inovadora não percorrer todo o caminho ascendente rumo ao
topo da pirâmide das classes socioeconômicas e, sobretudo, enquanto ainda não
estiver chancelada pelas “autoridades” da língua (gramáticos, dicionaristas, Academia
Brasileira de Letras), ela será vista como erro, tratada como erro e repudiada
como erro.
Um bom
exemplo desse mecanismo social (bastante perverso) se mostrou precisamente na
falsa polêmica levantada em 2011 pela grande (e estúpida) imprensa brasileira
em torno do livro didático que trazia a frase "Nós pega os peixe”. Num
telejornal apresentado num canal de televisão por assinatura, o jornalista
Carlos Monforte, depois de dizer que se tratava de uma “polêmica monstruosa”,
perguntou à professora Maria Alice Setúbal, que estava sendo entrevistada por
ele: “E então, professora? Onde é que fica as leis de concordância e de
regência?”
O exemplo é
muito bom porque apresenta um importante fenômeno de variação linguística numa
discussão (mal fundamentada) em torno precisamente da variação linguística e
seu tratamento na escola. Ao fazer a pergunta indignado à entrevistada, o
jornalista empregou o verbo ficar, invertendo a ordem sujeito-verbo em
verbo-sujeito. Ora, no português brasileiro contemporâneo, inclusive em suas
variedades urbanas de prestígio, sabemos que na inversão da ordem direta nós já
deixamos de fazer a concordância. Certamente, se o jornalista tivesse
perguntado algo como: “E as leis de concordância e regência, onde é que
ficam?”, seria alta a probabilidades de empregar as marcas de concordância.
Como se vê,
existem erros mais errados do que outros. O exemplo que o livro didático em
questão oferece - Nós pega os peixe – é visto como “monstruoso” pelo jornalista.
No entanto, onde fica as leis não recebe a mesma avaliação.
A conclusão
é que, quando o “erro” já se tornou uma regra na língua falada pelos cidadãos
mais letrados, ele passa despercebido e já não provoca arrepios nem dores de
ouvido – muito embora contrarie as regras da gramática normativa, aquelas que,
teoricamente, deveriam ser seguidas pelas pessoas “cultas”, sobretudo quando
acham em situação de alto monitoramento estilístico, como num programa
jornalístico ao vivo na televisão.
Existe uma
escola de “monstruosidade” nos erros, sob a ótica dos falantes que ocupam o
topo da pirâmide sociocultural e socioeconômica. Quanto maior o prestígio do
falante, menor é o erro; quanto menor o prestígio social do falante, mais
erros, e erros mais monstruosos, os cidadãos mais letrados percebem na fala
dele.
Fonte:
Revista CarosAmigos, junho/2013.
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