Àquela criança
A criança que fui
sonhava com um mundo bem diferente deste em que me encontro hoje. Não poderia ser
diferente. Com as minhas certezas de então, creio que os meus sonhos eram os
mesmos de toda e qualquer criança em qualquer tempo.
Comer, tomar banho?
Nem pensar.
Apenas brincar.
Brincar, brincar, brincar o tempo todo. Apenas a fome, quando insuportável,
ganhava importância. Era eu o herói de aventuras de mundos imaginários, e
perfeitos, ali mesmo nas calçadas da minha rua.
Um pedaço de pau, um
cabo de panela, uma escova de dente, um frasco de perfume, um cabo de vassoura,
uma lata redonda que servia para a minha roladeira, os pedaços de borrachas das
câmaras de ar com um gancho de algaroba transformavam-se em baladeiras, as
tradicionais brincadeiras no chão de lama salitrada das nossas ruas -
bandeirinha, garrafão, sete pecados - ou as folhas de um jornal velho que,
dobradas, me tornava um destemido soldado.
Barroca, com bilocas
que crianças de outras regiões chamam de bolinhas de gude, a imprescindível mancha
de tropa (esta servia como desculpa para darmos voltas por outras ruas próximas
das nossas). Uma meia, muitas vezes surrupiada do irmão mais velho ou de papai,
cheia de retalhos de tecidos, e tínhamos então a nossa Bola, nosso bolão.
Em minhas mãos, entre
tantos outros equipamentos, os brinquedos se transformavam nos poderosos e
infalíveis instrumentos das minhas aventuras. Num cavalo de pau eu empreendia
minha luta numa batalha que vencia sempre. Adormecia certo de que aquela havia
sido uma vitória importante...
As grandes e inimagináveis batalhas só perdiam
em importância quando, acabado os sonhos daquele dia, mamãe anunciava a hora de
dormir. Apenas a voz firme de mamãe e o banho antes de dormir metia medo...
A alta tecnologia não
havia ainda chegado às nossas casas, nem às nossas mãos. Era o artesão perfeito
dos equipamentos necessários para as minhas aventuras. Não ouvíamos clic nem conseguíamos imaginar o enter dos dias de hoje...
Meus sonhos de então
eram construídos – sem eu saber – para uma rua, uma cidade, um país, um mundo
em que a todos fosse reconhecido o direito do necessário para uma vida digna.
Herói-criança, nas minhas
aventuras lutava contra a fome, a guerra, o abandono, o preconceito, a desigualdade,
entre tantos outros conceitos criados pelo homem para nominar a parte pior dos
seus instintos, todos grandes inimigos da humanidade.
E, como se ainda
estivesse sonhando, minha memória me traz o instante em que um dia, ao acordar,
vi embaixo da minha rede um carrinho de plástico que meu Herói trouxera da
feira no dia 11, verde com rodinhas vermelhas. Simples e inesquecível.
Ainda não sabia de certo
Cavaleiro da Triste Figura...
Hoje, ainda sonho com
a criança que fui e felizmente alimento os mesmos sonhos. Sou grato àquela
criança.
Manoel Nazareno Félix
da Silva
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