Apesar de considerar o aborto uma ação moralmente reprovável, acredito que quando falamos em interrupção terapêutica da gravidez em caso do anencéfalo, estupro, gravidez de risco estamos diante de outros quinhentos muito distantes de 1500. Nesses casos, como o centro de gravidade da questão se transfere para a mãe em sua ontologia biológica, - seu direito à vida e sua dignidade de ser humano - acredito que os julgamentos morais são intempestivos e, portanto, inócuos. É a lei da vida: antes de dever ser, precisamos ser, existir, viver no sentido biológico da coisa.
Para analisar a questão numa perspectiva jurídico-filosófica, como acadêmico de Direito picado pelo mosquito da dengue verborrágica, não posso deixar de citar um pedaço da obra do historiador inglês Henry Thomas Buckle (1821- 1862), transcrevendo as palavras do jurisconsulto espanhol Sempere y Guarinos. Nele, vemos como era o direito Português à época da hegemonia da Igreja Católica, no tempo em que o Brasil foi invadido pela Lusitânia: "Los querellantes lesionados por la sentencia de un juez, podian quejarse a los bispos, y estos avocar a si las pendencias, reformarlas y castigar a los magistrados".
Como é de se observar, o direito canônico, que prezava pelo suplício do corpo, os ascetismo, hoje em dia, é coisa de livro de história. A moral religiosa na sociedade pós-moderna já não contemporiza com as liberdades e garantias que, há muito, a civilização ocidental vem conquistando. As bases de sustentação do discurso jurídico ocidental contemporâneo, sem dúvidas, passaram dessa fase. Há quem diga até que vivemos uma pós-metafísica, como queria a profecia do anticristo , ou melhor de Nietzsche.
Na minha formação pessoal, a religião teve, e tem, papel fundamental. “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêm”. Sou humano demais para me desvincular desse alicerce. Creio e amo a Deus, mas não posso deixar que a minha fé destrua a vida do próximo. Não é esse o cerne da filosofia cristã: amai ao próximo como a ti mesmo? A infração do princípio sacrossanto do amor ao próximo faria de mim o maior dos heréticos (se o direito canônico fosse interpretado dentro de padrões hermenêuticos lógico-jurídicos não sobraria um padre para contar a história). O amor ao próximo, por sua vez, pressupõe o respeito ao seu livre arbítrio.
Assim sendo, como podemos dizer que amamos as nossas mulheres se queremos privá-las de suas liberdades fundamentais?
Já dizia o cantor: “O amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade. Sofro, mas eu vou te libertar. Infinita é tua beleza. Como podes ficar presa que nem santa no altar?”. E fecha com chave de ouro: “ O que é que eu quero se eu te privo do que eu mais venero (....)?"
Não vou nem dizer quem era esse cantor. Citar dois anticristos na mesma carta é
critério para excomunhão.
Jônathas Silveira, macauense, é acadêmico de Direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário